Lei da Igualdade Salarial: impactos e resistência do meio empresarial

A Lei nº 14.611/2023, conhecida como Lei da Igualdade Salarial, representa verdadeiro marco na luta contra a desigualdade de gênero no Brasil por estabelecer diretrizes claras para empresas quanto à igualdade de remuneração entre homens e mulheres.

A nova lei determina que empresas com cem ou mais empregados devem elaborar e divulgar relatórios semestrais de transparência salarial, com o objetivo de identificar e corrigir discrepâncias salariais entre gêneros.

Regulamentação e transparência

A regulamentação detalhada veio por meio do Decreto 11.795/2023 e da Portaria do Ministério do Trabalho nº 3.714/2023, com detalhamento de informações que devem ser prestadas pelas empresas, incluindo dados como cargo, salário contratual, bonificações, horas extras, entre outros, além de informações que serão extraídas da Escrituração Fiscal Digital das Obrigações Fiscais, Previdenciárias e Trabalhistas (eSocial), como o número total de pessoas empregadas identificadas por sexo, raça e etnia, com os respectivos valores do salário contratual e do valor da remuneração mensal.

Aqui cabem parênteses para uma crítica. Entendemos que a técnica legislativa estaria mais alinhada com a perspectiva de gênero se mencionasse “gênero” ao invés de “sexo”, para evitar sobrepor critérios biológicos aos de identidade.

A partir das informações recebidas, caberá ao Ministério do Trabalho elaborar o Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios nos meses de março e setembro de cada ano, com fins de garantir a aplicabilidade da lei, além de adotar padrão de transparência e responsabilização.

Resistência do setor empresarial e contestação judicial

Apesar da intenção progressista da lei, há resistência significativa por parte do setor empresarial. Muitas empresas recorreram ao Judiciário para contestar a lei, argumentando que a divulgação desses dados poderia infringir direitos relacionados à privacidade e à competitividade empresarial.

Demonstrando estar mais alinhada com as políticas de concretização da igualdade de gênero, a Justiça manteve a exigência dos relatórios, enfatizando que a própria legislação prevê a aderência às normas da Lei Geral de Proteção de Dados e que as informações dos relatórios deverão ser anonimizadas, equilibrando as preocupações com a privacidade e a necessidade de transparência para a promoção da igualdade.

As insatisfações não pararam por aí: a Confederação Nacional da Indústria e a Confederação Nacional do Comércio e Serviços partiram para uma tentativa de suspensão da aplicação da lei com a distribuição da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7.612 no STF.

A alegação central das associações empresariais é de que a lei poderia impor ônus excessivo às empresas e que a publicação desses dados poderia ser prejudicial à imagem e à reputação corporativa.

Na fundamentação, as entidades defendem que os relatórios “certamente conterão diferenças remuneratórias legitimadas” e, sem grandes explicações, alegam que podem expor uma “falsa aparência de que a empresa esteja irregular do ponto de vista da isonomia”.

Em trecho da petição inicial, as entidades argumentam que “um homem substancialmente mais antigo em uma dada empresa, atendidos critérios razoáveis de tempo fixados pelo legislador, pode ganhar mais do que uma mulher na mesma posição, sendo a recíproca verdadeira”.

“Igualmente, uma mulher que execute trabalho com maior perfeição pode ganhar mais do que um homem na mesma função, e vice-versa, sem que nisso se encontre qualquer inconstitucionalidade material à luz do princípio da isonomia, já que adequadas, necessárias e razoáveis as desequiparações para um regime eficiente e meritocrático de remuneração no ambiente privado. É lógico que, quanto possível, o critério precisa ser objetivo, para que não haja discriminação escamoteada. O trabalho de igual valor deve ser remunerado de forma idêntica, e a isonomia é instrumento dessa máxima”.

Os argumentos das entidades demonstram ignorar a histórica desigualdade de gênero nas relações de trabalho, principalmente na ocupação de cargos de liderança, enquanto os dados globais apontam que, ainda hoje, as mulheres recebem salários cerca de 20% menores que os percebidos pelos homens [1], pelo simples fato de serem mulheres.

Finalidade da nova legislação, CLT e aspectos da regulamentação

O princípio da igualdade previsto na Constituição norteia o artigo 461 da CLT, segundo o qual “sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, no mesmo estabelecimento empresarial, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo, etnia, nacionalidade ou idade”.

O mesmo dispositivo, contudo, prevê casos em que, mesmo com igual valor e produtividade, a ausência de equiparação salarial seria “justificável”, como nas hipóteses em que a diferença de tempo de serviço para o mesmo empregador é superior a quatro anos, a diferença de tempo na função é superior a dois anos e nas hipóteses em que o empregador tenha pessoal organizado em quadro de carreira [2].

Mesmo sob essa perspectiva, as contestações judiciais das associações empresariais devem ser desconsideradas.

Isso porque, dentre os dados e informações a serem prestados pelas empresas, a Portaria MTE nº 3.714/2023 prevê que sejam prestadas informações quanto à existência ou inexistência de:

(1) quadro de carreira e plano de cargos e salários,
(2) critérios remuneratórios para acesso e progressão ou ascensão dos empregados,
(3) incentivos à contratação de mulheres e a
(4) identificação de critérios adotados pelo empregador para promoção a cargos de chefia, de gerência e de direção, contemplando informações suficientes para que as desigualdades que seriam “justificáveis”, sejam reveladas, sopesadas e explicadas pelos empregadores.

Sob outra perspectiva, as associações apontam que a divulgação dos dados e a elaboração de Plano de Ação para Mitigação da Desigualdade Salarial e de Critérios Remuneratórios entre Mulheres e Homens, nos termos no Decreto 11.795/2023 e na Portaria do MTE nº 3.714/2023, se revestiriam de penalidades aplicadas às empresas sem prévia oportunidade do direito de defesa.

Em verdade, a prestação das informações, divulgação dos relatórios e a elaboração de plano de mitigação das desigualdades não encontram caminho para serem consideradas penalidades para as empresas, já que informações como o número de funcionários por sexo, cargos ocupados e dados de remuneração integram as bases de dados governamentais. O que a nova lei traz é uma oportunidade para que as empresas forneçam dados adicionais que ajudem a contextualizar e explicar essas estatísticas.

Compromisso com a igualdade

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) proporcionou avanços significativos na promoção da igualdade de gênero nas relações de trabalho ao longo de seus 80 anos.

No entanto, as disposições trazidas não foram suficientes para erradicar a histórica desigualdade entre gêneros, profundamente enraizada no Brasil.

Reflexo disso é visto no 1º Relatório Nacional de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios, publicado em 25 de março pelo Ministério do Trabalho, ao demonstrar que mulheres ganham 19,4% menos que os homens no Brasil. Em cargos de dirigentes e gerentes, a diferença remuneratória chega a 25,2%, enquanto as mulheres negras representam a menor parcela no mercado de trabalho formal, com 16,9% do total de empregos com CLT.

Dados do Banco Mundial via relatório Mulheres, Empresas e o Direito [3] revelam as lacunas existentes entre as reformas legais e os resultados reais em 190 economias. Segundo o estudo, embora tenha havido a promulgação de leis que determinam a igualdade salarial entre gêneros por 98 economias, apenas 35 economias adotaram mecanismos de efetiva transparência salarial.

No Brasil, a Lei da Igualdade Salarial surge como uma iniciativa para melhorar esse cenário, estabelecendo diretrizes mais precisas e introduzindo a possibilidade de fiscalização efetiva via órgãos públicos e sociedade civil. Além de abordar as disparidades salariais existentes, a lei é um caminho para erradicação da desigualdade histórica que, por vezes, se esconde atrás de pretextos legalmente justificáveis, como os previstos no artigo 461 da CLT.

Ainda que a iniciativa legal de igualdade salarial seja imprescindível, a resistência do setor empresarial com investimento de tempo e recursos empresariais na contestação da lei reforça a existência da lacuna apontada pelo relatório do Banco Mundial entre reformas legais e resultados reais.

Investimentos em processos judiciais para contestar a lei poderiam ser aplicados na adaptação às novas normativas e no fomento à igualdade salarial interna. Essa resistência à lei não só desvia a atenção da implementação de práticas justas e equitativas, como sinaliza a relutância em adotar políticas de igualdade de gênero como um pilar empresarial irrevogável.

A preocupação com a divulgação de informações determinadas pela Lei da Igualdade Salarial, em verdade, escancara as dinâmicas de poder e a desigualdade de gênero no ambiente corporativo e reflete o receio da exposição da desigualdade salarial sistêmica.

O contrassenso está instalado: enquanto crescem as discussões corporativas sobre implementações de políticas de compliance cultural de diversidade, inclusão e pertencimento, curiosamente, associações empresariais buscam a derrubada de importante marco histórico de igualdade.

A transparência e a disposição para corrigir injustiças salariais não deveriam ser vistas como ameaças, mas como oportunidades para construir um ambiente corporativo mais justo e inclusivo. Os esforços que temos pela frente são gigantescos, as resistências maculam ainda mais o caminho por justiça social.

Fonte: Conjur

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