Decreto do governo restringe vale-alimentação e agride segurança alimentar

O consultor jurídico Roberto Baungartner, doutor em direito constitucional e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC), declarou, em entrevista ao HP, que o decreto do governo Nº 10.854, de 10 de novembro, que regulamenta disposições relativas à legislação trabalhista, altera uma série de benefícios no que se refere à alimentação e segurança do trabalhador.

A alteração inclui a redução de incentivos fiscais ao PAT (Programa de Alimentação do Trabalhador), afetando a abrangência dos trabalhadores beneficiados. A medida, afirma o consultor, foi considerada um “jabuti” no decreto, já derrotado no Congresso em outras tentativas do governo, como a de incluir a medida, por cinco vezes, no Projeto de Reforma Tributária.

O PAT beneficia, hoje, 22 milhões de trabalhadores com carteira assinada. O Programa tem a participação de 300 mil restaurantes, supermercados e estabelecimentos congêneres. Segundo Baungartner, o PAT foi criado pela Lei Nº. 6.321, de 14 de abril de 1976, com a finalidade de incentivar as empresas a concederem alimentação aos seus empregados e permite que elas descontem os gastos com o Programa no Imposto de Renda.

O decreto, no entanto, limita os incentivos fiscais a cartões de vale alimentação/refeição de trabalhadores que ganham até cinco salários mínimos, limita os incentivos à parcela do benefício que corresponder ao valor de, no máximo, um salário-mínimo, e fragiliza a fiscalização do trabalho ao excluir o Ministério Público do Trabalho (MPT) da função de garantir o cumprimento de normas trabalhistas nos locais de alimentação, e nos locais de trabalho em geral.

A medida foi, inclusive, repudiada pela ANPT (Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho), que pretende contestar o decreto do governo. “A ANPT vai analisar a via adequada de impugnação, inclusive judicial, se for preciso”, afirma a entidade.

A seguir, publicamos a entrevista com os detalhes das manobras do governo para tirar mais direitos e beneficiar os amigos. 

HP-  Quais são os efeitos do Decreto no Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) e quais os danos aos beneficiários?

Baungartner – Um dos aspectos preocupantes é a redução dos incentivos fiscais ao PAT. Este Decreto limitou ou reduziu de forma significativa os incentivos fiscais. O valor máximo do benefício não poderá ultrapassar a um salário mínimo. Há muitos empregadores que dão os dois benefícios (refeição e alimentação) que, somados, superam um salário mínimo. Não haverá incentivos fiscais sobre o cartão refeição / alimentação concedido ao trabalhador que recebe mais de 5 (cinco) salários mínimos, segundo consta no art. 186 do decreto.

HP – Como essa medida afeta a qualidade dos serviços prestados, da higiene e dos critérios nutricionais em relação à alimentação do trabalhador? 

Baugartner – O Decreto excluiu o Ministério Público do Trabalho de funções fiscalizatórias, restringindo-as aos auditores fiscais do Ministério do Trabalho. As consequências serão prejuízos na higiene, na saúde e na qualidade nutricional.
O Decreto faculta a todos os empregados a trocarem a marca do seu cartão refeição e alimentação a qualquer momento (portabilidade), o que cria enormes dificuldades operacionais aos empregadores e gestores de recursos humanos, desestimulando a adesão ao PAT. Impõe que os vales refeição e alimentação sejam usados na chamada “rede aberta”. Isso implica no aumento, praticamente ilimitado, da rede de estabelecimentos que recebem os cartões refeição e alimentação, derrubando os critérios nutricionais e sanitários apropriados. A chamada rede “aberta” atende o modelo de algumas Plataformas Digitais e pode significar a queda da qualidade nutricional e sanitária dos estabelecimentos que receberão os seus cartões refeição e alimentação. Isso tudo sem a fiscalização do MPT.

HP- Para o empresário, o que significa o Programa?

Baugartner – Segundo os dados oficiais do Ministério do Trabalho, o número de trabalhadores beneficiados pelo PAT resulta proporcionalmente na redução do número de acidentes de trabalho. O número de trabalhadores no PAT aumentou em 10,8%, de 2012 a 2017, sendo que no mesmo período ocorreram menos 164.579 acidentes de trabalho, conforme dados do governo. A boa nutrição do trabalhador preserva a sua saúde e reduz sensivelmente os acidentes de trabalho, além de reduzir o absenteísmo causado por doenças.
Conforme a OIT, a nutrição adequada tem impactos positivos na saúde e na segurança ocupacional. Segundo o Banco Mundial, a alimentação adequada pode aumentar a produtividade nacional em 20%. Existem vários estudos a respeito no site do Ministério do Trabalho do Prof. José Afonso Mazzon (FIA-USP), do DIEESE, várias dissertações e teses no campo da nutrição e da saúde, inclusive na Revista de Saúde Pública da USP.

HP- Qual o impacto do decreto no grave cenário econômico que se encontra o país?

Baungartner – O PAT movimenta toda a cadeia econômico-produtiva que vai do plantio no campo, passa pela industrialização e beneficiamento dos alimentos, até chegar ao prato do trabalhador. Mantém a arrecadação tributária em toda a cadeia econômica, reduz os custos de assistência social.

HP- Quem se beneficia com as mudanças?

Baungartner – As disposições deste Decreto contemplaram as “Fintechs”, startups financeiras e plataformas digitais – que precarizam o trabalho – em detrimento dos aspectos nutricionais e sanitários inerentes à rede de estabelecimentos, que serão expandidas de modo inapropriado.

HP-  O que pode ser feito para reverter o quadro?

Baungartner – O Governo Federal usualmente tem excedido os limites que competem a decretos. Isso aconteceu, por exemplo, no caso das armas. Portanto, poderão vir a ser encaminhados ao Congresso Nacional Projetos de Decretos Legislativos visando sustar os efeitos do decreto 10.854, de 10 de novembro de 2021. O deputado Marcelo Freixo (PSB/RJ) já apresentou, nesta sexta-feira, 12, o PDL (Projeto de Lei) 991/21, que susta os efeitos do decreto bolsonarista. Além disso, serão ajuizadas as ações cabíveis.

Fonte: Hora do Povo

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